terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

2020



Ela

Já estava cansada das mesmas músicas que a rotina cantava desafinada ás segundas pela manhã. O vento frio de São Paulo não era mais aquele vento que contraditoriamente a aquecia ha dois anos e meio atrás. Seu apartamento, um verdadeiro arquivo de encontros casuais, permanecia com a varanda iluminada pelas luzes da rua e as garrafas de cerveja importada continuavam jogadas em um canto qualquer da sala. Há meses.

Desde que seus antigos pensamentos a invadiram brutalmente em um porre de champagnhe rosê saindo da sua última reunião de pauta, a vida já caótica se tornou infernal. Ouviu no rádio três ou quatro dias depois, notícias de que no sábado, do dia 27, ele estaria na cidade. Naquela metrópole. Que não era dela nem dele - era emprestada pelo mundo. Comprou um vestido novo na cor de seus lençois: vermelho. Tinha essa mania estranha de combinar roupas do corpo com roupas de cama. E enquanto experimentava pela décima vez a nova peça, imaginava a roupa que ele estaria usando naquela entrevista. Cruzava os dedos para que combinasse com a fronha de seus travesseiros.

Deitou-se com o laptop no colo. Por diversas vezes escreveu e-mails tristes de saudade, como se fossem cartas, e os guardava por ordem de data na pasta de rascunhos. Todos eles com o destinatário pronto. Assim, fingia para si mesma que de fato ele havia recebido e estaria só esperando o momento certo de respondê-los. Imaginar suas respostas era seu remédio contra a insônia, em noites que subconscientemente ele reaparecia nos seus pensamentos.

Naquela noite, porem, véspera do dia 27, prometeu que mandaria um sinal em alguma dessas antigas redes de relacionamento que eles costumavam usar. Ele precisava saber que ela estava ali: bem perto. Hesitou e sem coragem adormeceu, enquanto fantasiava exausta qual seria sua resposta. Era melhor imaginar. Sempre.

Evitava observar com muita atenção suas fotos em matérias de jornais que vez ou outra ele aparecia contando suas últimas jornadas. Por isso, sentada em uma das últimas cadeiras do auditório lotado, reconheceu que ele não era mais um menino de vinte e poucos anos. Já era um homem e continuava lindo. Exatamente como no dia que no meio do estacionamento sorriram um para o outro como se já se conhecessem.

Tudo teria sido em vão, se mais uma vez ela não se satisfazesse com o simples fato de fantasiar o encontro. Não sobrou espaço e fôlego para seus braços finos e pernas bambas chegarem até a mesa que, feliz como nunca, ele distribuia seus autógrafos. E dali, ela foi até o estacionamento, o carro, e ao supermercado, para comprar duas, três ou seis cervejas importadas.


Ele

Ele continuava cheio de manias. Colecionava CDs e livros de todos os tipos. Até mesmo aqueles que nunca passaria os olhos. Justificava-se dizendo que mesmo que nunca lesse ou ouvisse, alguém com certeza um dia os pediria emprestado. E isso era uma coisa que gostava de fazer: emprestar. Era como se doasse um pouco de si mesmo ao outro. E com isso, fugia do compromisso de fixar sua personalidade. Ele queria ser muitos. Muitos em um só. E assim, era.

Não pediu que o sucesso batesse na sua porta. Afinal, nem muitas portas sua casa tinha. Meses depois que ela partiu, alugou ao lado de seu antigo luxuoso apartamento um quarto-sala onde só cabiam uma cozinha improvisada, a cama e suas coleções. Nas manhãs seguintes de seus sucessivos porres de vinho tinto, acordava com taças espalhadas até o teto. Lembrava sutilmente dela, que espalhava as garrafas de cerveja importada que bebiam juntos ás sextas por todo o apartamento. Ela sempre invadia sua mente sem que ele pedisse. E quando isso acontecia, escutava um dos novos CDs de sua coleção no volume máximo e marcava encontros com loiras. Um vício que alimentava o outro.

Conseguiu fama rápido. Em menos de um ano trabalhando em uma conhecida rádio da cidade, fora chamado para fazer programas de televisão de uma emissora muito bem conceituada. Era muito alto, e tinha os traços do rosto fortes.

Dizia não ter o dom para escrita, mas em seu laptop, cuidadosamente colocado no colo em madrugadas de insônia, escrevia histórias lindas que não deixava ninguém ler. A não ser ela, anos atrás. Seguiu o conselho de uma das loiras que por mera distração do álcool, tomou o laptop nas mãos e leu seus textos enquanto ele dormia. Acordou e ela tinha lágrimas nos olhos de emoção. Aquelas histórias eram muito bonitas para não serem publicadas. E assim, fez.

Ganhou prêmios, viajou o mundo e sentiu toda sua liberdade. Sentiu falta de casa - não das pessoas - e voltou deixando boas histórias para trás. Seis meses haviam se passado e pelo menos uma vez por semana lembrava daquele primeiro encontro no estacionamento. Ela cheia de sacolas nos braços, lutando para encontrar a chave do carro na bolsa. Ele não admitia, mas a observava desde que se encontraram na prateleira de destilados do supermercado. Ela, muito concentrada na escolha de seu Cabernet Sauvignon, não prestava muita atenção para os outros solteiros incompreendidos que também planejavam uma noite solitária de porre. Orgulhoso, dizia para si mesmo: fui eu que amei primeiro.

Já era inverno e na semana seguinte começava sua temporada de autógrafos pelo país. Achava esses eventos muito chatos e cafonas. Não sobrava tempo para curtir os lugares e conhecer pessoas novas. O hotel, por mais luxuoso e caro, não tinha o aconchego do seu minúsculo quarto-sala.

Notou que dia 27 estaria em São Paulo. Justo a cidade que era dela. Hesitou e pensou em se desculpar e dizer que não poderia ir por conta do frio. Imaginou ela por perto. Sentiu um arrepio. Não gostava de imaginar. Lembrava que em dias de muita imaginação, acordava com loiras desconhecidas do lado esquerdo da cama. Sentia-se culpado por isso.

Já era hora e o auditório estava lotado. Houve um momento em que ficou sem palavras. Sentia seus pensamentos distantes daqueles que o observavam com muita atenção nas primeiras cadeiras. Poderia dizer que ela estava ali, respirando do mesmo ar, ouvindo os mesmos sons. Distribuiu seus autógrafos e entrou no carro aliviado. Tudo o que mais queria - e iria - fazer era passar no supermercado mais próximo e comprar duas, três, ou seis cervejas importadas.

(continua...)

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